Antes
de entrar no mérito das discussões, gostaria de trazer para o debate um
elemento essencial, que muitas das vezes encontra-se OMITIDO das análises que
são feitas acerca da precarização de políticas públicas, da qual a Política de
Previdência Social é parte.
Trata-se
das crises com as quais o sistema capitalista se depara continuamente, e que
para mim traduzem-se numa impossibilidade de se falar em políticas de bem estar
social sem que se fale delas, as crises.
E
o que significam tais crises? Sem nenhuma dúvida tratam-se de crises de
lucratividade. Crises que atingem em cheio o centro do sistema capitalista, ou
seja, os países centrais, principalmente os Estados Unidos, e que chegam aos
países periféricos já com uma estratégia previamente formulada visando sua
superação, que por sinal é momentânea. São essas crises que estão na raiz
da precarização do sistema previdenciário brasileiro, e portanto, não há como
deixar de leva-las em consideração.
São
elas que paralisam governos de esquerda e de direita no mundo todo.
Exemplos não faltam de como Governos que se intitulam como “esquerda” passam a
adotar, quando no Poder, as mesmas plataformas que historicamente foram ligadas
a governos de “direita”. Temos aqui, aliás, um exemplo típico com o
Presidente Lula, que não se contentando em adotar apenas a plataforma
conservadora passou a se utilizar de ardis cada vez mais reprováveis antes
utilizados pela direita. Lula não abraçou apenas as teses da direita, mas
também o que é pior nesta seara ideológica: as formas de corrupção visando
unicamente um projeto de poder.Portanto, quando se fala em responsabilidade
jurídica no campo da saúde do trabalhador, não há como deixar de se apreender
as interferências que se operam por conta EXCLUSIVA das crises do sistema
capitalista.E como forma de demonstrar tais interferências, irei, aqui, fazer
um breve retrospecto acerca da evolução da legislação acidentária, enfocando o
benefício do auxílio-acidente.
II – MODIFICAÇÕES NO RAIO DE ABRANGÊNCIA DO
BENEFÍCIO DE AUXÍLIO-ACIDENTE
Segundo
a redação original do artigo 86, da lei 8.213/91, três eram as hipóteses que
permitiam o gozo do benefício do auxílio doença.
Art.
86. O auxílio-acidente será concedido ao segurado quando, após a consolidação
das lesões decorrentes do acidente do trabalho, resultar seqüela que implique:
I
- redução da capacidade laborativa que exija maior esforço ou necessidade de
adaptação para exercer a mesma atividade, independentemente de reabilitação
profissional;
II
- redução da capacidade laborativa que impeça, por si só, o desempenho da
atividade que exercia à época do acidente, porém, não o de outra, do mesmo
nível de complexidade, após reabilitação profissional; ou
III
- redução da capacidade laborativa que impeça, por si só, o desempenho da
atividade que exercia à época do acidente, porém não o de outra, de nível
inferior de complexidade, após reabilitação profissional.
Assim,
a redação original tinha como pressuposto para o recebimento do benefício a
REDUÇÃO DA CAPACIDADE LABORATIVA e a presença de MAIOR ESFORÇO para o exercício
da atividade, além, é claro, da existência de ACIDENTE DO TRABALHO.
A
lei 9.032/95 (de 29 de abril de 2005) modificou drasticamente o artigo 86, que
passou à ter a seguinte redação:
Art. 86. O auxílio-acidente será concedido, como
indenização, ao segurado quando, após a consolidação das lesões decorrentes de
acidente de qualquer natureza que impliquem em redução da capacidade funcional.
(Redação dada pela Lei nº 9.032, de 1995)
Inegável
que tal alteração ELASTECEU as hipóteses para o gozo do benefício, agora não
mais devido unicamente por ACIDENTE DE TRABALHO, mas também quando as lesões
decorressem de ACIDENTE DE QUALQUER NATUREZA. Outro avanço: não mais foi
exigida a presença de SEQUELAS, bastando a REDUÇÃO DA CAPACIDADE FUNCIONAL.Ora,
qualquer PERDA ou COMPROMETIMENTO de alguma função, que antes encontrava-se
NORMALIZADA, daria ensejo ao benefício em questão, o que acabou por alargar seu
raio de incidência. Todavia, em pouco tempo nova alteração legislativa, desta
vez com a lei 9.129/95 (de 25 de novembro de 1995) iria trazer mais
exigências para que se fizesse jus ao benefício. A cabeça do artigo 86 ficaria
com a seguinte redação:
Art. 86. O auxílio-acidente será concedido, como
indenização, ao segurado quando, após a consolidação das lesões decorrentes de
acidente de qualquer natureza, resultar seqüelas que impliquem
redução da capacidade funcional.
Aqui
já existe um elemento novo.
Não
mais bastaria a REDUÇÃO DA CAPACIDADE FUNCIONAL pura e simples. De tal redução
deveria resultar SEQUELAS. Nova alteração, “para pior”, pôde ser vista em
menos de 08 meses da regulamentação anterior, o que demonstra total falta de
DIRETRIZ POLÍTICA, por parte do Governo Federal, para a questão.Finalmente, a
legislação seria novamente alterada com a Lei 9.528/97, e o artigo 86 passaria
a ter a seguinte redação, até hoje mantida:
Art. 86. O auxílio-acidente será concedido, como
indenização, ao segurado quando, após consolidação das lesões decorrentes de
acidente de qualquer natureza, resultarem seqüelas que impliquem redução da
capacidade para o trabalho que habitualmente exercia.
A
redação hoje vigente, além de manter a necessidade de que a redução da capacidade
resulte de SEQUELA, determinou que esta tenha pertinência com o TRABALHO
HABITUALMENTE EXERCIDO. Pergunta-se: E se o acidentado não possuir uma
profissão específica? Como ficará sua situação?O legislador fingiu
desconhecer que um dos efeitos mais contundentes do processo de globalização em
que vivemos é o desemprego estrutural, o que faz gerar uma transitoriedade
profissional nunca antes vista. Portanto, mais uma modificação legislativa
extremamente prejudicial.
III – REFLEXOS DO BENEFÍCIO JUNTO AOS DEPENDENTES
DO TRABALHADOR
Na
redação original da Lei 8.213/91 haviam dois parágrafos que cuidavam dos
direitos dos dependentes em caso de falecimento de trabalhador que estivesse em
gozo de auxílio acidente.
Diziam
tais parágrafos:
§
4º- Quando o segurado falecer em gozo do auxílio-acidente, a metade do valor
deste será incorporado ao valor da pensão se a morte não resultar do acidente
do trabalho".
§
5º- Se o acidentado em gozo do auxílio-acidente falecer em conseqüência de
outro acidente, o valor do auxílio-acidente será somado ao da pensão, não
podendo a soma ultrapassar o limite máximo previsto no § 2º do art. 29 desta
Lei.
Pois
bem. A lei 9.032/95 simplesmente REVOGOU ambos os parágrafos, e o benefício em
questão não pôde mais ser estendido aos dependentes. Nova alteração que trouxe
inegável prejuízo aos trabalhadores e dependentes.
IV – UNIFICAÇÃO (E REDUÇÃO) DO VALOR DO BENEFÍCIO
Novamente
a legislação foi alterada em prejuízo dos trabalhadores. Aqui devemos ficar
atentos, porque uma análise pouco rigorosa pode até levar a conclusão de que a
alteração fora benéfica.
Vejamos a redação
original da lei 8.213/91, neste particular:
§
1º O auxílio-acidente, mensal e vitalício, corresponderá, respectivamente às
situações previstas nos incisos I, II e III deste artigo, a 30% (trinta por
cento), 40% (quarenta por cento) ou 60% (sessenta por cento) do
salário-de-contribuição do segurado vigente no dia do acidente, não
podendo ser inferior a esse percentual do seu salário-de-benefício.
A primeira
alteração se deu com a Lei 9.032/95, que unificou o valor do benefício, cujo
texto era o seguinte:
1º
O auxílio-acidente mensal e vitalício corresponderá a 50% (cinqüenta por cento)
do salário-de-benefício do segurado.
Ao invés de 30, 40
ou 60%, a alteração legislativa determinou que o benefício observasse o valor
de 50% do salário de benefício, mas por outro lado suprimiu a proibição
anterior, afastando um limite mínimo em relação ao mesmo salário de
benefício. O que o legislador deu com uma mão retirou com a
outra!Por outro lado, criou-se uma dificuldade na mensuração das situações de
incapacidade à partir da unificação em questão. O que antes, por se tratar de
uma perda funcional mínima, se enquadraria no percentual de 30% ou 40%, hoje
pode muito bem ser desconsiderado pela perícia médica previdenciária, e mesmo
pela perícia médica judicial.
É
o que se extrai da decisão abaixo:
ACIDENTE
DO TRABALHO - BENEFÍCIO - ACIDENTE-TÍPICO - REDUÇÃO DA CAPACIDADE LABORATIVA -
INOCORRÊNCIA – DESCABIMENTO. É incabível a concessão do benefício acidentário
se o obreiro, após sofrer acidente-tipo 'in itinere' (lesão no 4º quirodáctilo
da mão esquerda), tem preservada a sua capacidade laborativa. (Tribunal de
Alçada SP, Ap. s/ Rev. 623.375-00/0 - 11ª Câm. - Rel. Juiz OSCAR
BITTENCOURT - J. 1.10.2001)
V - EXTINÇÃO DO CARÁTER VITALÍCIO DO BENEFÍCIO DE
AUXÍLIO ACIDENTE
O
auxílio acidente é benefício devido por força de lesão ou moléstia de caráter
permanente – adquirida ou não por acidente de trabalho – capaz de gerar incapacidade
parcial.Portanto, tem fonte de custeio específica, paga pelas empresas sob o
título de SEGURO ACIDENTE DE TRABALHO.
Diante
disso a lei 8.213/91, em sua redação primitiva, dispunha textualmente que
tratava-se de benefício MENSAL e VITALÍCIO.
§ 1º
O auxílio-acidente, mensal e vitalício, corresponderá, respectivamente às
situações previstas nos incisos I, II e III deste artigo, a 30% (trinta por
cento), 40% (quarenta por cento) ou 60% (sessenta por cento) do
salário-de-contribuição do segurado vigente no dia do acidente, não podendo ser
inferior a esse percentual do seu salário-de-benefício.
Pois bem. Mesmo na
primeira série de medidas flexibilizantes, iniciada com a lei 9.032/95, o
benefício continuaria possuindo caráter vitalício, de acordo com a redação que
o § 1º, do art. 86, ganharia.
§
1º O auxílio-acidente mensal e vitalício corresponderá a 50%
(cinqüenta por cento) do salário-de-benefício do segurado. (Redação dada pela
Lei nº 9.032, de 1995)
A vitaliciedade,
todavia, não subsistiu nas modificações posteriores, e a lei 9.528/97
modificaria novamente o § 1º, do artigo 86, ficando ele com a seguinte redação:
§
1º O auxílio-acidente mensal corresponderá a cinqüenta por cento do
salário-de-benefício e será devido, observado o disposto no § 5º, até a
véspera do início de qualquer aposentadoria ou até a data do óbito do segurado.
(Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997)
A lei em questão
proibiu o recebimento vitalício do auxílio-acidente desprezando o fato de que
ele, o auxílio acidente, DEVE ser pago enquanto perdurar situação de
incapacidade. É fruto exatamente de situações de incapacidade,e para tanto
possui, como já foi dito, fonte de custeio própria. Essa é a interpretação que
se amolda ao caráter protetivo dado pela Constituição Federal sempre que se
fale em acidente do trabalho.
Art.
7º - São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem
à melhoria de sua condição social:
XXVIII:
seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a
indenização, a que este está obrigado;
Em nenhuma
hipótese e sob nenhum pretexto, pois, a lei ordinária poderia delimitar período
de incidência do benefício, enquanto durar a incapacidade, o que nos permite
concluir ser INCONSTITUCIONAL a lei 9.528/97 neste particular.
VI – PROIBIÇÃO DE
ACUMULAÇÃO COM BENEFÍCIO DE APOSENTADORIA
Outra
questão que causa muita preocupação e que revela o caráter precarizante das
alterações legislativas diz respeito à proibição da acumulação do
auxilio-acidente com o benefício da aposentadoria.
O texto original
da lei 8.213/91 dizia o seguinte:
§
3º O recebimento de salário ou concessão de outro benefício não prejudicará a
continuidade do recebimento do auxílio-acidente.
A precarização se
iniciou com a lei 9.528/97, quando os parágrafos 1º e 2º, do artigo 86, foram
modificados, passando a ter a seguinte redação:
§
1º O auxílio-acidente mensal corresponderá a cinqüenta por cento do
salário-de-benefício e será devido, observado o disposto no § 5º, até a
véspera do início de qualquer aposentadoria ou até a data do óbito do segurado.
(Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997)
§
2º O auxílio-acidente será devido a partir do dia seguinte ao da cessação do
auxílio-doença, independentemente de qualquer remuneração ou rendimento
auferido pelo acidentado, vedada sua acumulação com qualquer
aposentadoria. (Redação dada pela Lei nº 9.528, de 1997)
Novamente
uma inconstitucionalidade gritante veio à tona.
É
que não foi levado em consideração que cada benefício tem sua situação geradora
específica. Assim, aposentadoria por tempo de serviço decorre do trabalho
prestado ao longo do tempo; a aposentadoria por idade, igualmente, é decorrente
da idade mínima atingida por qualquer trabalhador e que lhe confere o direito à
aposentação. E o auxílio-acidente decorre da incapacidade permanente para o
trabalho, ou seja, apenas poder-se-ia falar em proibição de acumulação deste
com a aposentadoria por invalidez, dado que ela absorve o referido benefício.
VII - A PRIVATIZAÇÃO DO SISTEMA PREVIDENCIÁRIO E
ACIDENTÁRIO
Defendemos
a tese de que há, em curso, um amplo Projeto de privatização dos sistemas
previdenciário e acidentário.A Emenda Constitucional 20/98, trouxe uma série de
mudanças constitucionais no que tange à previdência social. O que
mais nos chama a atenção, entretanto, é a nova definição do conceito de
previdência social, assim redigido no artigo 201:
Art. 201. A previdência social será organizada sob
a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória,
observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial
(...)
O mesmo se dá no
que se refere à cobertura dos riscos acidentários. A Emenda
Constitucional 20/98 trouxe uma roupagem mista, conforme podemos ver no § 10º,
do artigo 201, da Constituição Federal, que hoje possui a seguinte redação:
§
10. Lei disciplinará a cobertura do risco de acidente do trabalho, a ser
atendida concorrentemente pelo regime geral de previdência social e pelo setor
privado. (Incluído dada pela Emenda Constitucional nº 20, de 1998)
Portanto, seja
adorando um modelo atuarial, seja adotando um modelo de política acidentária
onde o setor privado será também responsável pela cobertura previdenciária, o
legislador constituinte praticamente deu início ao processo de privatização da
previdência social.
Com isso, e sob o
argumento de que a Previdência Social é DEFICITÁRIA, novas mudanças, todas
precarizadoras, ainda hão de ocorrer nos próximos anos.Aliás, quanto ao suposto
DÉFICIT da Previdência, trata-se de um argumento inverídico.
Na
verdade, a arrecadação dos cofres do INSS cresceu no de 2004, em termos
nominais, 16% em relação a 2003, passando de R$ 80,73 bilhões para R$ 93,77
bilhões. As fontes oficiais omitem para a sociedade que os repasses
constitucionais das fontes exclusivas de recursos que deveriam ser alocados nos
programas fins de saúde, previdência e assistência social, são, na execução,
realocados para cobertura de gastos fiscais e obtenção de superávit primário. É
o que diz estudo feito pela Associação Nacional dos Auditores da Previdência
(ANFIP).
VIII - CONCLUSÃO
O QUE FAZER DIANTE DO QUADRO TRÁGICO QUE SE
APRESENTA NO BRASIL?
A
resposta a essa pergunta certamente não é fácil. A Previdência Social continua
agindo contra os interesses dos trabalhadores e menos favorecidos. As
subnotificações acidentárias estão longe de serem extirpadas do cenário
nacional. Fóruns que se realizam com o único propósito de somar forças para frear
o avanço das políticas conservadoras constituem uma iniciativa salutar. Os
sindicatos tem o dever, como representantes dos trabalhadores, de colocar a
discussão sobre a saúde do trabalhador na pauta do dia. E os advogados
tem que ter uma estratégia calcada não apenas nas denúncias, mas sobretudo
buscando o ressarcimento do dano moral sofrido por milhões de trabalhadores
que, mesmo com todas as evidências, têm seus direitos previdenciários e
acidentários renegados pelas autoridades.
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