Depois
de doze anos em vigor, a lei brasileira que restringiu a posse e o porte de
armas de fogo no país está prestes a ser alterada pelo Congresso Nacional.
Desde 2003, o Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826) vem sendo ameaçado por tentativas de
revogação que agora podem ser concretizadas com a aprovação do Projeto de Lei 3.722/2012, que está pronto para votação no plenário da
Câmara dos Deputados.
Em
meio a polêmicas e bate-bocas públicos entre parlamentares, as mudanças no estatuto foram aprovadas no começo de novembro pela
comissão especial criada na Câmara, de onde seguiram para o plenário. Se
aprovada pela maioria dos deputados, a proposta ainda precisa passar pelo
Senado Federal, onde o debate deve ser mais equilibrado.
O
projeto, batizado de Estatuto do Controle de Armas, dá a qualquer cidadão que
cumpra requisitos mínimos exigidos na proposta o direito de comprar e portar
armas de fogo, inclusive a quem responde a processo por homicídio ou tráfico de
drogas. Além disso, reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para comprar uma
arma e garante o porte de armas de fogo a deputados e senadores.
O
embate em torno das mudanças extrapola os corredores do Congresso e opõe
entidades da sociedade civil e especialistas em segurança pública. O tema
também tem ganhado espaço nas redes sociais.
Números
Mais
de 880 mil pessoas morreram no Brasil vítimas de armas de fogo (homicídios,
suicídios e acidentes) de 1980 a 2012, segundo o Mapa da Violência 2015.
No último ano do levantamento, 42.416 pessoas morreram por disparo no país, o
equivalente a 116 óbitos por dia.
Em
2004, primeiro ano após a vigência do Estatuto do Desarmamento, o número de
homicídios por arma de fogo registrou queda pela primeira vez após mais de uma
década de crescimento ininterrupto – diminuindo de 39.325 mortes (2003) para
37.113 (2004).
Com
15 milhões de armas de fogo (8 para cada 100 habitantes), o Brasil ocupa a 75ª
posição em um ranking que analisou a quantidade de armas nas
mãos de civis em 184 nações. No levantamento, feito pelo Escritório das Nações
Unidas sobre Drogas e Crimes (Unodc) e a SmallArmsSurvey – entidade
internacional que monitora o comércio de armas e conflitos armados no mundo –,
os Estados Unidos aparecem no primeiro lugar do ranking com
270 milhões de armas em uma população de 318 milhões de habitantes (mais de 85
armas para cada 100 habitantes).
Segundo
o Mapa da Violência 2015,
do total de armas no Brasil, 6,8 milhões estão registradas e 8,5 milhões estão
ilegais, com pelo menos 3,8 milhões nas mãos de criminosos.
De
acordo com o Ministério da Justiça, de 2004 a julho deste ano, 671.887 armas de
fogo foram entregues voluntariamente por meio da Campanha Entregue sua Arma,
prevista no Estatuto do Desarmamento.
Por
que manter o Estatuto do Desarmamento?
A
defesa do Estatuto do Desarmamento colocou do mesmo lado aliados improváveis,
como o deputado Jean Wyllys (PSOL-RJ) e o líder religioso pastor Silas
Malafaia, além de nomes como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso; o
secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame; a
ex-senadora Marina Silva; e o presidente do Senado, Renan Calheiros (PMDB-AL).
“A
questão da arma de fogo não é uma questão conservadora ou progressista. Inundar
a sociedade com armas de fogo é algo que diz respeito à segurança. E a
segurança não é nem de direita nem de esquerda, é uma questão que envolve a
vida das pessoas, independentemente da sua orientação política”, avalia o
diretor executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques.
Os
que defendem o estatuto têm a seu favor um arsenal de pesquisas e estudos que
mostram a efetividade de uma lei anti-armas mais rígida e alertam para o risco
de violência associado à maior quantidade de armas de fogo em circulação. No
Mapa da Violência de 2015, por exemplo, o pesquisador e sociólogo
JulioJacoboWaiselfisz chegou à conclusão que 160.036 vidas foram poupadas com o
maior controle de armas decorrente do estatuto.
O
indicador de morte evitadas é calculado pela comparação entre a tendência de
crescimento de morte violentas antes da lei e os números reais de ocorrências
após a implementação do estatuto.
Na
série histórica de morte por armas de fogo do estudo (1980-2012), o ano de
2004, primeiro após a entrada em vigor da lei, registra a primeira queda no
número de homicídios por disparos após dez anos de crescimento ininterrupto -
diminuindo de 39.325 mortes (2003) para 37.113 (2004).
Já
no estudo Mapa das Armas de Fogo nas Microrregiões
Brasileiras, o pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea) Daniel Cerqueira concluiu que o aumento de 1% na quantidade de
armas de fogo em circulação eleva em até 2% a taxa de homicídios. Dados da
Organização das Nações Unidas mostram que, enquanto no mundo as armas de fogo
estão associadas a 40% dos homicídios, no Brasil, os disparos são responsáveis
por 71% dos casos.
“Revogar
o Estatuto do Desarmamento é uma proposta não só reacionária, mas completamente
desvinculada de qualquer critério técnico, porque todos os dados, evidências,
mostram que mais armas significam mais mortes”, acrescenta o vice-presidente do
Conselho de Administração do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato
Sérgio de Lima.
Para
além das conclusões teóricas sobre armas de fogo e violência, Lima destaca que
quem lida com a segurança pública na prática também defende mais controle no
acesso às armas.
“Policial
que passou por cargo de gestão e tem experiência é a favor do controle. Sabe
que é mais fácil trabalhar em um ambiente onde quem estiver armado é criminoso,
portanto poderá ser detido e poderá ser julgado. Liberar para todo mundo andar
armado dificulta o trabalho da polícia”, compara.
Em
outubro, após a votação do texto-base do Estatuto do Controle de Armas, o fórum
se manifestou contrário às mudanças em um documento com mais de 80 assinaturas,
entre elas as de comandantes-gerais de polícias e delegados.
Desde
a implementação em 2003, o Estatuto do Desarmamento foi alvo de quase uma
dezena de tentativas de alteração por meio de projetos no Congresso Nacional. O
perfil mais conservador da atual legislatura e a composição pró-armas da
comissão especial – na qual sete dos 54 deputados receberam recursos de
campanha da indústria de armas – favoreceram a aprovação da lei que flexibiliza
o controle da posse e do porte.
Para
se contrapor a essa ofensiva, 230 parlamentares se juntaram na Frente
Parlamentar pelo Controle de Armas, pela Vida e pela Paz, presidida pelo
deputado Raul Jungmann (PPS-PE). O grupo espera equilibrar a discussão das
mudanças no estatuto no plenário da Câmara e barrar a influência da bancada da
bala no debate.
“Quem
defende a arma para si não se dá conta que todos vão se armar. Por exemplo, a
juventude das periferias, que se sente tão marginalizada e tão sofrida, vai
toda se armar; nos campos de futebol, nas festas, no trânsito, na rua, todos
estarão armados. As pessoas pensam que arma é só para defesa, não, ela é para
destruição e para conflito”, argumenta Jungmann.
“O
estatuto é algo que foi feito ao longo de governos, não pertence a nenhum
governo especificamente. É uma construção que veio da sociedade para o
Congresso. É algo que a sociedade precisa se mobilizar para defender”, pondera.
Por
que revogar o Estatuto do Desarmamento?
O
direito à autodefesa diante da incapacidade do Estado de garantir a segurança
pública é uma das principais bandeiras dos defensores da revogação do Estatuto
do Desarmamento. A lista dos que saem publicamente em defesa da flexibilização
das regras é encabeçada por parlamentares da chamada bancada da bala e
entidades civis criadas após a entrada em vigor da lei, considerada uma das
mais rígidas do mundo no controle de armas.
“O
direito à defesa em nada tem a ver com fazer Justiça com os próprios meios, a
liberdade de acesso às armas inclui o direito à defesa, mas não se resume a
ela. O fato de o cidadão poder se defender não tira da polícia ou do Estado
nenhum direito. Nenhum cidadão armado vai cumprir mandado de busca e apreensão,
vai sair perseguindo bandido, vai fazer inquérito, vai fazer papel de polícia”,
argumenta o presidente do Instituto de Defesa, Lucas Silveira. Criada em 2011,
a entidade tem 130 mil associados e atua no lobby pró-armas no
Congresso e nas redes sociais.
Segundo
o presidente do Movimento Viva Brasil, Bene Barbosa, diante da deficiência das
forças policiais em conter a violência e das falhas da Justiça em punir os
criminosos, o Estatuto do Desarmamento tirou do cidadão a “última
possibilidade” de se defender, com a restrição do acesso às armas.
“Quando
o estatuto foi implantado em 2003, a gente já apontava que a lei não teria eficácia
na redução de homicídios, da criminalidade violenta como um todo, pelo
contrário, poderia trazer efeito inverso do que foi prometido, uma vez que
traria uma sensação de segurança maior para o criminoso. O bandido entendeu
esse estatuto e as campanhas voluntárias de entrega de armas de fogo como
símbolo de que sociedade estava se rendendo”, compara.Para o grupo pró-armas, a
necessidade de revisão do estatuto é “urgente” e atende ao desejo da população
manifestado desde o referendo sobre comércio de armas de 2005, em que a maioria
dos brasileiros votou pela manutenção do comércio de armas e munição no
Brasil.“O estatuto foi aprovado em menos de seis meses, foi de má-fé, de ardil,
se não o povo não tinha deixado”, avalia Silveira, do Instituto Defesa. “No
referendo, o cidadão disse que não queria que o comércio fosse proibido. Ainda
assim, ano após ano, as medidas, especialmente do Executivo, passaram a
recrudescer a legislação de armas, indo de encontro ao interesse público”.
O deputado Alberto Fraga (DEM-DF) defende a
revogação do Estatuto do Desarmamento Lucio Bernardo Jr./Câmara dos
Deputados
Os
defensores do Projeto de Lei 3.722/2012 argumentam que a proposta ainda é
bastante restritiva no que diz respeito ao controle de armas no Brasil. Umas
das principais lideranças da bancada da bala e coronel da reserva da Polícia
Militar o deputado Alberto Fraga (DEM-DF) diz que, ao reduzir a burocracia e a
subjetividade na concessão de licenças de armas, a mudança no estatuto vai
permitir inclusive que o Estado tenha mais informações sobre a quantidade de
armas existentes no país.
“Se
sou governante, prefiro saber quantas armas meu país tem, de forma legal. A
ideia é criarmos instrumentos de controle e que o governo federal saiba onde
estão essas armas. Hoje ele não sabe, não tem noção de quantas armas existem no
país. Há 12 anos o estatuto está em vigor e não se tem esse controle, então
para que está servindo? Para nada”, critica.Para Silveira, a proposta em
tramitação na Câmara é “um meio termo” entre a liberdade de armas e o controle
do atual estatuto, porque mantém algumas exigências para a compra e o porte,
como laudo psicológico e curso básico para uso dos equipamentos. O ativista
reconhece que a quantidade de armas em circulação no país poderá aumentar com a
flexibilização da lei, mas diz que essa relação não é direta. “As pessoas não
vão ser obrigadas a comprar armas, compra quem quer. Não é porque tem esse
direito que ela vai necessariamente exercê-lo.”“Não dá para dizer que vamos ter
uma lei que vai permitir que todo mundo tenha arma, que você vai poder comprar
arma na banca de jornal e munição na padaria, isso não é verdade, a ideia é
modernizar, trazer uma lei que atenda mais às necessidades da sociedade”,
acrescenta Bene Barbosa.Na avaliação dos pró-armas, os grupos que fazem a
defesa do desarmamento “fazem terrorismo” ao associar diretamente a quantidade
de armas à evolução dos índices de criminalidade. Os armamentistas costumam
citar casos como o da Suíça e dos Estados Unidos, que, apesar da grande
quantidade de armas nas mãos de civis, têm índices de criminalidade muito inferiores
aos do Brasil.
“Os
desarmamentistas adoram fazer terrorismo dizendo que as brigas de bares, de
trânsito vão ter arma de fogo, isso não acontece na prática. Até 2003, qualquer
pessoa podia ter arma, inclusive porte, e isso era feito na Polícia Civil,
ainda assim os índices de crime daquela época eram menores que os que a gente
tem hoje”, avalia Silveira, sem considerar o crescimento populacional no
período.
O
grupo também questiona os dados de mortes evitadas pelo Estatuto do
Desarmamento, calculados pelo Mapa da Violência de 2015,
segundo o qual mais de 160 mil vidas foram poupadas por causa da restrição às
armas no país. “Quero conhecer essa cartomante ou essa vidente que disse que o
estatuto evitou essas mortes, não tem cabimento. E ainda tem uma questão óbvia:
dentro dessas mortes que eles anunciam, estão as mortes, na maioria, de
bandidos. Bandidos que matam cidadãos de bem. Os casos de mortes de pessoas do
bem são insignificantes”, avalia o deputado Alberto Fraga.Apoiadas no argumento
de que há “um clamor popular” por liberalização da legislação brasileira
anti-armas, posições como a de Fraga, de outros deputados da bancada da bala e
de grupos favoráveis ao armamento privado ganham força nas redes sociais.
“Quando
comecei nesse debate em 1995, 1996, era o malvado, o vilão, era visto como o
cara que queria armar criancinhas, que não estava nem aí para tiroteio em
escola. Mas isso mudou muito, nas redes sociais fica mais do que claro que isso
inverteu, hoje estamos numa posição muito mais confortável. Hoje ter uma
posição a favor do desarmamento é muito mais desgastante do que o contrário”,
compara Barbosa, do Movimento Viva Brasil, que roda o país em conferências e
entrevistas em defesa da posse e do porte de armas.
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